domingo, 5 de outubro de 2003

O governo virtual do presidente

Amigos: reproduzo aqui o Editorial do Jornal O Estado de SP, que acho muito oportuno e nos remete a uma reflexão de importância ímpar:

Começa a adquirir proporções inquietantes o contraste entre o governo que o presidente Lula exibe aos brasileiros e o governo que efetivamente os brasileiros têm. A discrepância entre o radioso governo virtual das falas presidenciais e o menos do que satisfatório governo da realidade chegou a um nível sem precedentes na entrevista de Lula a emissoras de rádio do País, na quinta-feira. De fato, na hora e meia em que respondeu a 18 perguntas de jornalistas, o presidente traçou um quadro mais exageradamente róseo de sua atuação do que em qualquer outra oportunidade, alargando o fosso perceptível a olho nu que separa fatos e ficções do desempenho da administração federal.

A mais recente prova dessa percepção está nos números da última pesquisa sobre a avaliação do governo e do presidente. Segundo o levantamento, aumentou de 13% para 24% a desaprovação ao trabalho da equipe de Lula, enquanto a aprovação caiu de 75% para 69%. Mesmo a confiança no presidente caiu de 80%, em março, para 70%, em setembro. É ainda uma taxa que muitos líderes nacionais devem invejar - e é nesse patrimônio de prestígio pessoal que Lula parece amparar-se cada vez mais para contrabalançar o desgaste da imagem de seu governo. Daí, decerto, o otimismo rasgado que ele se esforçou por transmitir na entrevista ao meio de comunicação que mais alcança as classes pobres e o uso recorrente de metáforas e expressões populares.

A fórmula perderá efeito se a vida real insistir em não respaldar os elogios do presidente ao seu governo. Além disso, já soam menos convincentes os apelos à paciência do público. Por exemplo, os brasileiros se cansaram de ouvir a metáfora da gestação: seria injusto demandar grandes realizações a curto prazo de um governo que precisa de tempo para dizer a que veio, como uma criança que leva nove meses para nascer. Agora que o período se cumpriu, Lula tratou de encontrar uma nova saída - transparentemente ladina - para conter a frustração das expectativas. "Eu ontem completei nove meses de governo", lembrou aos radialistas. "Então, um governo, no seu primeiro mandato, com nove meses, é uma coisa tão incipiente que ninguém pode cobrar nenhum milagre."

O que não o impediu de considerar o Fome Zero "um sucesso absoluto", citando as mudanças ocorridas na indigente Guariba - "pela primeira vez a cidade tem um instituto de beleza" -, apenas um dos 1.227 municípios que o programa pretende atender. Lula escondeu dos ouvintes o que até as pedras de Brasília estão fartas de saber - o seu desapontamento com a inação e os tropeços dos ministérios da área social, sem excluir o da Segurança Alimentar e Combate à Fome. Em matéria de educação, saúde, promoção social, o Planalto só coleciona dores de cabeça - a exemplo dos queixumes do ministro Cristovam Buarque, da colisão pública com o ministro Humberto Costa sobre o Estatuto do Idoso e da viagem "a serviço" da ministra Benedita da Silva a Buenos Aires para um evento religioso. E a unificação dos programas sociais sofre sucessivos atrasos.

Mais grave foi Lula se vangloriar de o seu governo ter dado "uma trucada" nos países ricos, na recente reunião da Organização Mundial do Comércio, em Cancún. A referência ao jogo de cartas em que o blefe é essencial sugere que o presidente não está se dando conta de que, tendo um dos jogadores capital suficiente para "pagar para ver", sempre que desejar, o blefe sairá pela culatra. É rigorosamente o que já se desenha numa área crítica para o País - a do comércio exterior - em razão da política de confronto desabrido com os Estados Unidos no caso Alca. O governo se comporta como o comandante que ordena um ataque frontal a um inimigo muito mais bem equipado, que dizimará as suas tropas, como se essa fosse a única tática possível.

E vem o presidente, por fim, dizer às rádios que "acabou o tempo das vacas magras". É verdade que a realista política econômica do ministro da Fazenda, Antônio Palocci, resgatou os indicadores financeiros do abismo em que foram lançados no ano passado pelo temor do que seria um Brasil governado pelo PT.

Mas como falar em fim das vacas magras quando acaba de ser noticiado que nunca foi tão baixo o investimento produtivo brasileiro? Ou quando o Planalto se vê obrigado a sepultar oficialmente a sua reforma tributária?

Está para nascer o governante que, falando ao seu povo, deixará de passar uma mensagem positiva de seu governo. Mas, quando essa mensagem carece de base factual, não há carisma que baste.


Fonte: http://www.estado.com.br/editorias/03/10/05/editoriais001.html

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