sábado, 24 de junho de 2006

SOBRE RELIGIÃO E FUTEBOL

Uma revista aos conceitos básicos da matéria

A religião se encontra nos lugares menos óbvios e onde menos se espera, seja nos jogos de futebol, no crescente comércio de unhas postiças das meninas, no controle remoto das televisões, nas tatuagens, nos ossos que ficam como reminiscências do corpo, nos avanços bioinformáticos, na literatura de William Gaddis, nas pinturas de Mark Tansey, na obra de arte de Michael Barney, Vito Acconti e Michael Heiser, nos epitáfios dos túmulos de filósofos e nas conexões da internet. A noção de Deus passou da religião para a estética e agora se concentra no mercado financeiro e das grandes corporações.

Hegel e Kierkegaard são dois filósofos muito influentes, cujo trabalho delineou caminhos alternativos de estar-no-mundo. Embora ambos insistissem que suas idéias eram um complemento necessário aos princípios inicialmente articulados por Lutero, as suas perspectivas filosóficas e teológicas são bastante diferentes. Hegel desenvolve um sistema abrangente, no qual tudo está interconectado e inter-relacionado, enquanto Kierkegaard vai radicalizar a noção de indivíduo isolado, cujas raízes podem chegar até o nominalismo medieval.
Depois deles, a história da filosofia e da teologia nos séculos XIX e XX pode ser descrita como um pêndulo oscilando entre essas duas posições. Mas a importância do trabalho de Hegel e Kierkegaard não está limitada apenas à filosofia e à teologia, mas se estende para outros domínios culturais e formas diferentes de organização sociopolítica.

A religião é, sob muitos aspectos, o tema mais complicado para a universidade trabalhar. Muitos dos problemas nasceram da incapacidade de se distinguir adequadamente a prática e o estudo da religião. Esse impasse é criado pela compreensão limitada da religião por parte daqueles que a defendem e também dos que a criticam. Muitos acadêmicos continuam comprometidos com as teorias de secularização formuladas na década de 60. Sob o ponto de vista dessas teorias, modernização e secularização são inseparáveis: as sociedades se modernizam e tornam-se mais seculares através de um processo que é ao mesmo tempo inevitável e inseparável.
Obviamente, as coisas não aconteceram exatamente assim.
A religião nunca foi tão poderosa ou tão perigosa quanto hoje. É absolutamente essencial que o ressurgimento recente da religião não seja encarado como uma volta às formas pré-modernas de crença e prática. Ao contrário, o surgimento de formas mais conservadoras da religião é um fenômeno global caracteristicamente pós-moderno.

A religião não vai desaparecer e, provavelmente, vai se tornar ainda mais poderosa nas próximas décadas. Portanto, a criação de análises mais sofisticadas e capazes de compreender melhor as nuances do que está acontecendo é de vital importância. E o ponto de partida dessa investigação deve ser o reconhecimento de que a própria secularização é um fenômeno religioso produto do judaísmo e do cristianismo.

A religião não é só o que acontece nas igrejas, nos templos e mesquitas. Há uma dimensão religiosa em toda cultura. A arte, a literatura e a arquitetura modernas, por exemplo, nunca teriam se desenvolvido da mesma forma sem a profunda influência das várias tradições religiosas e espirituais.

A noção de indivíduo presente nos fundamentos da maior parte das teorias políticas e econômicas modernas foi definida pela primeira vez no protestantismo. Adam Smith desenvolveu sua análise dos mercados, que até hoje continua balizando as políticas econômicas, pela apropriação do conceito da mão invisível de Calvino. É importante expandir nosso conhecimento sobre a religião de forma a nos permitir determinar exatamente a sua influência na chamada cultura secular.

O estudo crítico da religião nunca foi tão importante quanto é hoje, e nunca foi tão difícil. Por um lado, o politicamente correto metamorfoseou-se em “religiosamente correto”. Alguns religiosos atacaram os acadêmicos -às vezes até ameaçando com violência-, acusando-os de não respeitarem suas crenças. Em casos extremos, os críticos do estudo secular da religião insistem que só os religiosos comprometidos com determinado credo estão qualificados para ensinar a sua tradição religiosa.

Por outro lado, os críticos também dizem que a religião é epifenomenal e deve, portanto, ser reduzida a sistemas e processos mais básicos, como as infra-estruturas psicológica, sociológica e econômica. O que realmente precisamos hoje é de uma abordagem do estudo da religião que seja multidisciplinar e comparativa. É necessário utilizar a luz de cada uma das diferentes perspectivas metodológicas nas tradições religiosas que dialogam entre si.
Os trabalhos mais interessantes para o estudo da religião estão sendo feitos fora dessa área de conhecimento. Eu identificaria três áreas: arte, literatura e ciências biológicas. É preciso enfatizar, no entanto, que nenhum desses pensadores necessariamente consideram seu trabalho como religioso ou até mesmo relevante para a religião.

No campo das artes, artistas que fazem intervenções paisagísticas, como Michael Heizer e James Turrel, estão desenvolvendo projetos altamente ambiciosos e importantes. Outros artistas com trabalhos importantes são Richard Serra, Ann Hamilton, Matthew Barney, Joseph Beuys e Anselm Kiefer. Na literatura, dois autores merecem bastante atenção: William Gaddis e Mark Danielewski. Finalmente, nas ciências biológicas, eu citaria trajetórias ao invés de indivíduos.
Acredito que nas próximas décadas a bioinformática será tão importante quanto os computadores e as redes têm sido no passado recente. À medida que as pesquisas avançam na biologia digital e vida artificial e se alcançam novas tecnologias, a fronteira entre homem e máquina será cada vez mais obscura. Esses avanços têm implicações enormes para as tradições religiosas.

Acredito que a existência é algo relacional -ser é estar conectado. Para entender uma coisa é necessário deslindar a teia de relacionamentos dentro da qual emerge o objeto de estudo. Por exemplo, não é possível compreender o neoliberalismo do capitalismo global sem entender, por exemplo, a doutrina da providência de Calvino e, por outro lado, os jogos de representação de papéis on-line para múltiplos jogadores (MMORPGs).

A centelha criativa aparecesse quando aproximamos dois fenômenos aparentemente não relacionados entre si. A maneira pela qual o conhecimento se estrutura não é imutável, mas reflete os modos de produção e reprodução existentes na sociedade. À medida que passamos do capitalismo industrial para o capitalismo de consumo e finalmente ao capitalismo financeiro, a estrutura da realidade foi sendo modificada. O problema é que as universidades não se transformaram junto com o mundo.

O modelo das universidades atuais foi formulado pela primeira vez por Kant, num artigo presciente publicado em 1789. Kant usou como modelo a universidade de produção em massa. Tente imaginar currículos e universidade estruturados como se fossem uma rede, ao invés de uma assembléia linear e você terá uma idéia das mudanças de que a universidade necessita hoje.

Em maneiras diversas, as guerras religiosas do século 21 são extensões das guerras culturais dos anos 60. Para muita gente, que vai de George Bush ao papa Bento 16, os anos 60 nos introduziram em um caminho de relativismo que somente poderá ser corrigido pelo returno aos absolutos.

quinta-feira, 22 de junho de 2006

Mona Lisa Desmascarada

O polêmico assunto retornou ao debate, há algumas semanas, em virtude da notícia de mais um bebê encontrado vivo em lata de lixo. A líder feminista subiu nas tamancas e brandiu o dedo em defesa dos direitos da mulher sobre o próprio corpo (como se sabe, esse é um eufemismo para sustentar o direito de matar e remover do útero o corpo de um outro ser humano, o indefeso feto ali albergado).

Apontei a contradição: “A senhora incorre num paradoxo. Não lhe parece estranho lamentar um bebê jogado vivo no lixo da calçada e, simultaneamente, pleitear que esse mesmo bebê, semanas ou dias antes, possa ser morto e lançado na lixeira de um hospital?” A única resposta que obtive foi “não é bem assim”, seguida por sorriso de impenetrável significado.

Toda defesa do aborto se faz com artifícios retóricos que só servem para tentar justificar o injustificável e que não resistem a uma análise racional. Aliás, Schopenhauer, em seu ensaio sobre como vencer um debate sem ter razão aponta, entre os estratagemas que podem conduzir a esse resultado, o desvio de foco. Ficou sem argumento? Mude de assunto. Foi o que a médica tratou de fazer. Apanhada em contradição, saiu-se com esta: “A Igreja Católica é a grande responsável por não termos ainda legalizado o aborto no Brasil. No entanto, esse não é um assunto religioso. Ademais, existe no Brasil a separação entre Igreja e Estado. O senhor sabia disso?”.

Sim, eu sabia. E também sabia que o argumento continha outra das espertezas catalogadas por Schopenhauer. Ela consiste em retirar conclusões falsas de premissas que todos sabem ser verdadeiras. Como as pessoas concordarão com as premissas, ficarão inclinadas a concordar com a conclusão. A frase da médica era um exemplo disso. De fato, a Igreja é contra o aborto. De fato, existe a separação entre Igreja e Estado. Mas não se pode deduzir como conseqüência dessas duas afirmações que o aborto deva ser legalizado.

Foi fácil desmascarar a artimanha. “Segundo esse seu raciocínio, doutora, a tortura deveria ser legalizada no Brasil, porque a Igreja também é contra a tortura. Aliás, a lista de crimes aos quais a Igreja se opõe é mais extensa do que o Código Penal. Talvez conviesse rasgá-lo”. E extraí outro sorriso daqueles, tipo Mona Lisa desmascarada.

Continuo à espera de que me apresentem um único argumento favorável ao aborto que escape ao denominador comum da retórica desonesta. Aqueles que os afirmam contam com a ingenuidade dos que os ouvem.


por Percival Puggina em 19 de junho de 2006