quinta-feira, 22 de junho de 2006

Mona Lisa Desmascarada

O polêmico assunto retornou ao debate, há algumas semanas, em virtude da notícia de mais um bebê encontrado vivo em lata de lixo. A líder feminista subiu nas tamancas e brandiu o dedo em defesa dos direitos da mulher sobre o próprio corpo (como se sabe, esse é um eufemismo para sustentar o direito de matar e remover do útero o corpo de um outro ser humano, o indefeso feto ali albergado).

Apontei a contradição: “A senhora incorre num paradoxo. Não lhe parece estranho lamentar um bebê jogado vivo no lixo da calçada e, simultaneamente, pleitear que esse mesmo bebê, semanas ou dias antes, possa ser morto e lançado na lixeira de um hospital?” A única resposta que obtive foi “não é bem assim”, seguida por sorriso de impenetrável significado.

Toda defesa do aborto se faz com artifícios retóricos que só servem para tentar justificar o injustificável e que não resistem a uma análise racional. Aliás, Schopenhauer, em seu ensaio sobre como vencer um debate sem ter razão aponta, entre os estratagemas que podem conduzir a esse resultado, o desvio de foco. Ficou sem argumento? Mude de assunto. Foi o que a médica tratou de fazer. Apanhada em contradição, saiu-se com esta: “A Igreja Católica é a grande responsável por não termos ainda legalizado o aborto no Brasil. No entanto, esse não é um assunto religioso. Ademais, existe no Brasil a separação entre Igreja e Estado. O senhor sabia disso?”.

Sim, eu sabia. E também sabia que o argumento continha outra das espertezas catalogadas por Schopenhauer. Ela consiste em retirar conclusões falsas de premissas que todos sabem ser verdadeiras. Como as pessoas concordarão com as premissas, ficarão inclinadas a concordar com a conclusão. A frase da médica era um exemplo disso. De fato, a Igreja é contra o aborto. De fato, existe a separação entre Igreja e Estado. Mas não se pode deduzir como conseqüência dessas duas afirmações que o aborto deva ser legalizado.

Foi fácil desmascarar a artimanha. “Segundo esse seu raciocínio, doutora, a tortura deveria ser legalizada no Brasil, porque a Igreja também é contra a tortura. Aliás, a lista de crimes aos quais a Igreja se opõe é mais extensa do que o Código Penal. Talvez conviesse rasgá-lo”. E extraí outro sorriso daqueles, tipo Mona Lisa desmascarada.

Continuo à espera de que me apresentem um único argumento favorável ao aborto que escape ao denominador comum da retórica desonesta. Aqueles que os afirmam contam com a ingenuidade dos que os ouvem.


por Percival Puggina em 19 de junho de 2006

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